Hong Kong vs China vs Blizzard vs Gaming

BLIZZCHINA

Há vários temas que não deviam ser envolvidos com o mundo dos videojogos. A política é um deles. Recentemente, vimos o governo da República Popular da China a interferir no mundo do entretenimento, tudo por causa de uma onda de activismo pela independência de Hong Kong. Infelizmente, também os jogos foram afectados.

Muito (mesmo muito) resumidamente, a província autónoma de Hong Kong, tal como aconteceu com a antiga colónia portuguesa de Macau, foi reintegrada na República Popular da China em 1997. Desde então, a região teve sempre um governo próprio interino, mas Pequim tem vindo a remover poderes locais, querendo cada vez mais implementar as suas leis restritivas, contra a óbvia oposição dos locais.

Em Junho passado, uma nova lei que visava extraditar para a China todos os dissidentes e activistas fugitivos neste território autónomo, gerou uma onda de protestos que fechou ruas inteiras e até aeroportos, com activistas a pedir o fim desta nova lei no território. Os confrontos com as forças da lei Chinesas tem subido de tom, com agressões que enchem as televisões e jornais. Um protesto tão desigual já é um conflito social de ideologias e que tem recebido muito apoio internacional.

A opinião pública deu tempo de antena aos activistas, com diversas figuras públicas a juntarem-se às vozes que pedem uma “libertação” de Hong Kong. A China respondeu como sempre fez quando algo não lhe agrada, com pressões comerciais e censura forçada, levando marcas famosas como a Apple, NBA, Nike, Vans, American Airlines, Disney, Mercedes e tantas outras a serem obrigadas a emitir pedidos de desculpa ou a fazer a sua própria censura interna de publicidade ou mensagens oficiais e até a “calar” funcionários.

A mais recente vítima desta onda de censura e da pressão comercial da China foi a Blizzard Entertainment. A produtora e editora já tinha mostrado muito interesse pelo mercado emergente Chinês, quando anunciou uma infame nova aventura de Diablo para smartphones, claramente a apontar para o oriente, ora não tivesse a parceria da Chinesa NetEase. Desta vez, porém, a situação é bem mais grave que uma aposta comercial pouco consensual, envolve mesmo punições para quem tenta usar a sua liberdade de expressão.

Recentemente, a atitude de três jogadores universitários nos EUA numa competição relacionada com o seu célebre jogo de cartas Hearthstone, foi o suficiente para a “máquina” Chinesa actuar. Os três jovens decidiram mostrar um cartaz que dizia “Libertem Hong Kong, Boicotem a Blizz” (em cima) no final do jogo, tendo sido prontamente tirados do ar. Podem assistir aqui ao vídeo, com o gesto polémico no fim da partida.

A Blizzard não perdeu tempo a banir os três jogadores por seis meses, justificando o seu acto como “uma violação da secção 7.1.B do campeonato, por ter um comportamento perturbador da transmissão oficial de eSports”. Dado que os jogadores só apresentaram o cartaz no final da partida e não interromperam nenhuma actividade do jogo, parece uma justificação um tanto forçada. Mas, aqui a alegação é outra.

O artigo 7.1.B em questão diz que os participantes devem “tratar todos os indivíduos a assistir à transmissão com respeito”, segundo as regras partilhadas pelo organizador do evento, a Tespa. A mesma alínea diz que “os participantes não deverão tomar nenhuma acção ou gesto direccionado a outro participante, administrador da Tespa ou outra parte ou incitar outros a fazer o mesmo que seja abusivo, insultuoso, jocoso ou perturbador”. Ou seja, a alegação cai mais sobre a parte de “boicotar a Blizz” que propriamente a de “libertar Hong Kong”, o que até quase justifica a punição. Contudo, o histórico recente mostra outra realidade nesta atitude.

No passado dia 6 de Outubro, o jogador Chung “Blitzchung” Ng Wai foi igualmente punido por ter dado uma entrevista mascarado e, pelo meio, ter apelado à libertação de Hong Kong, com os apresentadores levados a esconder a cara. Nessa ocasião, apesar de Blitzchung ter vencido outro torneio de Harthstone, o prémio foi-lhe negado e o jogador foi barrado de participar em competições oficiais por um ano.

O efeito desta censura contra jogadores que tentam passar uma mensagem de activismo, chegou mesmo às fileiras da própria Blizzard, com alguns funcionários da empresa a serem igualmente punidos pelos seus protestos contra a alegada opressão em Hong Kong. Ainda assim, alguns não tiveram receio de demonstrar o seu desagrado:

Not everyone at Blizzard agrees with what happened.

Both the “Think Globally” and “Every Voice Matters” values have been covered up by incensed employees this morning. pic.twitter.com/I7nAYUes6Q

— Kevin Hovdestad (@lackofrealism) 8 de outubro de 2019

Embora a Blizzard tenha recuado (de certa forma) no caso “Blitzchung”, tendo mesmo reduzido a suspensão do jogador e devolvido o dinheiro do prémio, a imagem da empresa de videojogos, assim como todas as outras que de alguma forma exerceram censura, está manchada na opinião pública. O presidente J. Allen Brack chegou mesmo a insinuar que as relações com a China “não tiveram influência na decisão”, mas ninguém acreditou.

A censura não só pela Blizzard, mas também por todas as demais empresas, com claro olho no interesse económico no importante mercado Chinês, sem esquecer a “guerra comercial” entre EUA e China iniciada por Donald Trump, não deveria ter lugar nesta indústria. A política no seu todo, aliás, é que não deveria ter lugar aqui.

Mas, é inevitável que os jogadores aproveitem a exposição pública para apelar ao activismo de uma questão social grave a acontecer algures. Recordamos imensos outros movimentos (como as causas #metoo ou igualdade de género, por exemplo) que também geram ondas de activismo e chegam mesmo aos torneios de eSports, mas recebem outro tratamento. Não nos recordamos de algum outro momento em que jogadores e atletas de eSports tivessem sido tão abertamente censurados e banidos por activismo. Aliás, esta indústria sempre se mostrou de pensamento livre e sem qualquer tipo de compasso moral.

No passado, ouvimos falar de jogadores censurados, apenas por batotas, ofensas directas, actos desviantes ou abusivos, passando por afastamentos ou banimentos de competições por esses motivos, obviamente válidos. Porque apelam para uma resolução de um conflito social opressivo, mesmo não sendo este o local correcto, parece-nos drástico e claramente a defender apenas interesses comerciais, revogando o direito à liberdade de expressão. Algo que parece ser comum na República Popular da China, mas que não faz falta nenhuma ao mundo ocidental e ao nosso mundo dos videojogos.

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