Depois de uma dolorosa espera, The Last of Us Part II chegou finalmente para nos fazer lembrar que ainda se fazem boas narrativas, com personagens fortes e desenlaces com enorme impacto, sem ignorar a jogabilidade. A Naughty Dog está mesmo de volta.
Há certos jogos que, pela sua qualidade como um todo, definem uma geração de consolas. Chamamos a estes títulos “vendedores de consolas”. Foi o caso do primeiro The Last of Us. Lançado na PlayStation 3, ainda veio dar um importante empurrão também à PlayStation 4. Visceral, por vezes chocante, mas sempre assente numa forte construção de personagens e de história, é para mim um dos melhores jogos do universo PlayStation, numa sucinta lista de títulos exclusivos nesta plataforma. The Last of Us Part II, portanto, tem a pesada responsabilidade de recuperar essa importante marca indelével. Contudo, a Naughty Dog é conhecida por não se ficar entre barreiras ou acobardar perante convenções. E esta produção já tinha afirmado que não se importava de correr alguns riscos. O que envolve mexer com paradigmas.
E paradigmas serão mesmo mexidos. Como? É complicado explicar sem algum risco de vos estragar a experiência. Vou tentar ao máximo não vos dar spoilers desta história que, sinceramente, merece ser jogada do princípio ao fim e sem interrupções. Contudo, há certos pormenores que, vão desculpar-me, tenho mesmo de mencionar, a bem de entenderem a profundidade deste enredo. Vou evitar comparações com o primeiro jogo, embora estas sejam inevitáveis. Também vou evitar falar de pedaços da história que se verificam lá mais para o fim da trama, a bem de alguma surpresa que vos reste, mesmo depois de fugas de informação pelo meio. Se, como eu, evitaram todos os spoilers, preparem-se para uma aventura que só posso classificar como uma “montanha-russa emocional”.
Conforme recordarão do final do primeiro jogo (que devem jogar antes deste), Ellie e Joel fugiram do destino. Imune à implacável infecção que tornou uma boa porção da humanidade em horríveis monstros ou zombies, Ellie deveria ser estudada pelos cientistas do grupo Fireflies para encontrar uma cura. Mas, como Ellie poderia não sobreviver ao processo, Joel, o seu tutor que a levou até ao grupo de cientistas, decidiu salvar a jovem e… executar todos os que se opuseram. Mesmo no final desse jogo, Joel mente a Ellie por lhe dizer que os cientistas não conseguiram a cura e libertaram-na. A verdade, sabíamos nós. E a dupla teria de viver com isso, agora numa vila protegida em Jackson. Fim.
Arrancamos este jogo com Joel e Ellie a viver com esta mentira. Mas, também nos apercebemos que há mais alguém vítima das acções de Joel. Como devem imaginar, Joel assume aqui um papel secundário, sendo Ellie e as suas crises de adolescência, entre namoros difíceis e uma figura paternal complexa, o principal veículo condutor. Depois esta história é afectada por uma nova aparente antagonista, numa estranha obsessão cujas intenções só iremos perceber lá mais para a frente. Sem revelar muito de como esta trama se desenvolve, vou só mencionar que essa nova personagem se apresenta inicialmente como uma mera sobrevivente na história principal de Ellie. Fiquem de olho nela.
Após imensos desenlaces, alguns bem difíceis de digerir, a história leva-nos para uma espiral. Iremos acompanhar Ellie numa história perfeitamente linear até um certo ponto e depois iremos obviamente enfrentar as consequências do passado. O enredo avança no tempo, recua e regressa. Tem o objectivo de desenvolver laços, ganhar empatia e depois entender os porquês de algumas decisões. Devo dizer que fiquei profundamente apaixonado pelo formato. A história, contada assim, ganha imenso poder, tanto emocional, como narrativo. E, pelo meio, até mudamos de opinião sobre umas quantas decisões tomadas.
Gostava imenso de discutir alguns pormenores desta história, mas não posso. É preferível que a joguem e tirem as vossas conclusões. Confesso que o final me deixou um amargo de boca. Não, não estou só a falar daquele eterno vazio que sentimos quando acabamos um bom jogo. Estou a falar, isso sim, de como a história realmente acaba. Diria que todo o final do jogo, mesmo o próprio epílogo, me deixou pessoalmente dividido. Estou certo que vai também dividir opiniões dos demais jogadores. Seja como for, depois de vastas horas a jogar, a ideia que fica é que a própria vida é injusta neste mundo pós-apocalíptico. Assim sendo, talvez o final seja o melhor entre vários males.
Independentemente do último capítulo poder dividir as opiniões, a história de The Last of Us Part II, como um todo, é excepcional. As prestações dos actores, com o regresso de Ashley Johnson (Ellie), Troy Baker (Joel) e Jeffrey Pierce (Tommy) e a adição de Shannon Woodward (Dina) e Laura Bailey (Abby) criam excelentes momentos de actuações exímias que só ajudam a entregar as emoções e os desenlaces da melhor forma. Como no primeiro jogo, há momentos fortes, em que o elemento de jogabilidade é posto de lado e a narrativa toma conta, com cenas intermédias dignas de Hollywood. E é quase impossível não ganharmos laços emocionais com personagens tão fortes.
Claro que o outro elemento que torna estes jogos memoráveis é a sua jogabilidade. Para esta segunda parte, a Naughty Dog desenvolveu diversos pormenores da interacção para dar outro patamar de qualidade. De um modo geral, a ênfase é dada agora ao movimento furtivo. Em algumas secções é inevitável a troca de tiros mas, de um modo geral, o intuito é esgueirar pelas sombras ou pelos objectos sem sermos vistos, atacando os incautos no maior silêncio possível. Para isso, temos agora muitos mais objectos dispersos e, em algumas secções, a relva cresceu de tal modo que a podemos usar para nos escondermos.
O que é mais interessante é que agora nos podemos evadir de ataques com maior facilidade. No primeiro jogo, um tiro dado ou um ruído mais intenso alertava todos os inimigos e tínhamos de os matar um a um. Neste segundo jogo, porém, seria algo suicida fazê-lo em algumas partes, sobretudo contra infectados mais numerosos ou humanos de facções fortemente armadas (com alguns suicidas lá pelo meio). Agora, é possível evadir depois de sermos descobertos, de modo a recomeçar o ataque. Isto cria algumas novas estratégias, como poder atacar escondidos, dividir os inimigos agrupados, atraí-los para outro ponto e matar o resto silenciosamente. Claro que alguns inimigos são bem mais astutos e há secções onde não podemos esconder-nos facilmente.
Embora seja mais difícil fazê-lo com os infectados, é também possível usar esta táctica de ataque furtivo com estes monstros. Temos agora novos tipos de infectados, inclusive um que decide explodir esporos ácidos na nossa proximidade (simpático). Para todos eles há tácticas específicas, mas ainda temos a fiel garrafa ou tijolo para atirar e atrair uns quantos para um local onde os podemos eliminar mais facilmente. Para adicionar ao suspense, há secções onde a única fonte de iluminação é a nossa lanterna. E a Naughty Dog deve ter andado a inspirar-se no género de terror, porque há secções mesmo propícias a um ou outro “jump scare”. Aviso desde já que há algumas secções que são impróprias para cardíacos.
De um modo geral, apesar destas nuances, a acção é familiar para quem a apreciou no primeiro jogo. Nota-se, realmente, o foco para a acção furtiva, com mapas mais labirínticos e cheios de obstáculos para nos ajudar. Mas, também há secções sem saída aparente onde só podemos evadir depois de eliminar todos os inimigos ou de os matar até certo ponto. Terão de usar todas as armas mais ou menos óbvias. Ainda assim, é possível passar a maioria sem disparar um único tiro, esgueirando além dos adversários. Apenas temos de ter cuidado com alguns infectados, como os “clickers”, que possuem excelente audição ou com os novos cães que nos farejam facilmente.
Continuamos com os mapas vastos mas claramente lineares, com um convite à exploração de itens para o já conhecido crafting. Tal como no primeiro jogo, podemos fabricar itens como kits de primeiros-socorros, cocktail-molotov e até setas, desde que tenhamos os ingredientes. Mas, temos também personalização e melhoria de armas em bancadas próprias, uma mecânica que nos obriga a procurar bastantes peças pelos mapas. Convém realmente procurar bem em cada canto, sobretudo por munições e comprimidos para evoluir as habilidades, em especial nos níveis de dificuldade mais altos. Até porque há secções que nos enchem de munição, para depois nos colocar numa arena sem grandes recursos e que nos deixam sem balas num ápice.
Há umas poucas secções em que temos uma espécie de mundo aberto à exploração, como a enorme baixa de Seattle, por exemplo. Mas, não se enganem. São secções confinadas para explorar e representam uma pequena porção do jogo. Servem para ajudar a encontrar recursos para evoluir e para o crafting, algumas notas ou documentos para ajudar no lore e, claro, dar que fazer aos que gostam de completar os jogos a 100%. Seria interessante explorar o conceito de um mundo de The Last of Us aberto à exploração, sem dúvida. Mas, como devem imaginar, conciliar uma boa narrativa a um conceito sandbox é algo complicado, se é que é possível fazê-lo nos mesmos moldes desta série.
Em termos de novidades na interacção, temos agora alguns mini-puzzles mais complexos em que teremos de encontrar a zona de passagem, por vezes partindo janelas, noutras vezes usando cordas ou até rastejar por buracos improváveis. E nem tudo é óbvio. Confesso que algumas zonas se tornam confusas de avançar e obrigam a alguma paciência. Em pelo menos duas secções fiquei literalmente preso no mapa, sem saber bem o que fazer. Sem problema, o jogo oferece uma pista ao fim de uns minutos de indecisão. Ainda assim, gostava que as dicas para abordar alguns inimigos mais difíceis fossem dadas em jogo, ao invés de termos de esperar pelo infame ecrã de carregamento.
Uma nota positiva para os checkpoints de salvamento automático. Obviamente, não podem ser muito estreitos entre si para evitar algum facilitismo. Contudo, o salvamento do progresso é constante e, em várias ocasiões, até nos poupam a repetição de uma boa porção de jogo. Mesmo assim, aconselho vivamente a salvar o jogo manualmente sempre que se preparam para executar algo mais complicado. Sobretudo em secções mais complexas de combate com muitos inimigos ou alguma secção que envolva movimentos de perícia. Notem que algumas áreas, como nos confrontos com bosses, o espaço entre checkpoints é, obviamente, um pouco mais amplo.
E este visual? As imagens que partilho aqui são capturadas inteiramente em jogo. Se o primeiro título foi um marco tecnológico na PlayStation 3 e depois na PlayStation 4, The Last of Us Part II será igualmente um importante “benchmark” das capacidades desta última consola, em especial na PS4 Pro onde testámos o jogo. Desde as florestas nevadas de Jackson, às ruínas de Seattle, passando por vários locais em Washington ou Wyoming, e outros locais icónicos da devastação dos Estados Unidos, The Last of Us Part II é um jogo absolutamente deslumbrante. A qualidade geral de texturas, animações e efeitos especiais é irrepreensível, com muito poucas falhas visíveis e que nem merecem qualquer tipo de destaque. A optimização de actualizações tratará disso.
O grande foco técnico neste jogo são, obviamente, as personagens, num trabalho exímio de modelação. Como temos várias idades retratadas, fruto de alguns avanços e recuos no tempo, é de louvar também esse trabalho de criar faces mais ou menos atingidas pela idade. As animações faciais e expressões são do melhor que vão encontrar em videojogos, conferindo o realismo necessário às já louvadas prestações dos actores. Há momentos em que confundimos as personagens com actores reais e isso é um elogio tremendo ao trabalho da produção. Sobretudo nos momentos de maior violência, em que é complicado não franzir o sobrolho a cada novo golpe.
Veredicto
De vez em quando, terminamos um determinado jogo e ficamos sem saber o que jogar a seguir. É o tal vazio que menciono acima e que surge sempre que terminamos um jogo que nos enche as medidas. The Last of Us Part II é uma excelente demonstração de como é possível criar um título de grande qualidade narrativa, aliado a uma jogabilidade irrepreensível e um grafismo de sonho. Melhor, consegue cativar-nos do princípio ao fim, dando-nos ganas de reiniciá-lo no modo “New Game +”. Num ano atípico, com uma nova geração a chegar, arrisco dizer que este poderá ser um dos melhores jogos que já joguei nesta geração.