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Análise – Ancestors: The Humankind Odyssey

A origem da espécie humana foi sempre alvo das mais vastas teorias. Contudo, por mais apaixonante que seja o tópico, dificilmente seria material para um videojogo. A produtora Panache Digital Games teve outra ideia e trouxe-nos Ancestors: The Humankind Odyssey. Darwin ficaria orgulhoso.

Experiência não falta a Patrice Désilets, fundador deste estúdio e ex-director criativo da Ubisoft, responsável pelos primeiros títulos da série Assassin’s Creed. A premissa do jogo, pelo menos, sempre se mostrou muito interessante desde as primeiras demonstrações que fomos vendo. Original, era de certeza, pelo menos no tema, mesmo que as lógicas de jogabilidade não parecessem francamente inéditas. Ainda assim, haviam muitas dúvidas sobre a ambição deste projecto e, sobretudo, da capacidade do pequeno estúdio Indie Francês de nos entregar uma experiência competente. Este cepticismo era normal. Afinal, desde 2010 que Patrice não apresentava um projecto seu e este é também o primeiro título criado pelo seu estúdio fundando em 2014. Sem pressão, portanto.

O jogo arranca com um sério aviso: não vamos receber grande ajuda nesta epopeia. E, de facto, além de uma série de curtos e objectivos textos de tutorial para entendermos algumas mecânicas, estaremos por nossa conta. O que é uma premissa terrível para qualquer jogo, ainda para mais com tantas coisas por explicar. A ideia é que a história ainda não está escrita e que seremos nós a contá-la pelas nossas acções. Aqui estamos nós encarregues da evolução da Humanidade… só… e não temos qualquer tipo de orientação além de uns pequenos guias de como usar o estranho interface. E, como um sombrio prenúncio do que se avizinha, o texto introdutório termina desejando-nos “boa sorte”… ok…

Não preciso explicar como este tipo de jogos de mundo aberto à exploração são sempre subjectivos e divisórios de opinião. Mas, Ancestors vai mais longe do que apenas criar uma ambiguidade de eventos. Este é um jogo de exploração e aventura, em que personificamos um dos primeiros símios que haveriam, segundo a teoria do evolucionismo, evoluir geneticamente ao longo das eras até chegar à espécie humana. Para isso, os símios precisam treinar o seu cérebro e o seu corpo, usando de inteligência para procurar subsistência, angariar informação do meio ambiente, criar utensílios e armas, entre outras etapas de evolução. E nada disto pode seguir um raciocínio estruturado, tudo foi perfeitamente aleatório segundo a teoria da “sobrevivência do mais forte”, criada por Charles Darwin. E o jogo faz questão de nos recordar constantemente disso.

Isto significa morte. O vosso símio vai morrer muitas vezes, simplesmente porque não saberão como lidar com alguns problemas ou por mero fruto do acaso. Aconteceu-me diversas vezes deambular pelo mapa em busca de algo, encontrar uma situação de perigo e não saber o que fazer. Por exemplo, numa das explorações com o primeiro símio, fui atacado por um tigre dentes-de-sabre que deixou o pobre Ta (o nome do hominídeo que controlava) a sangrar de forma abundante. Por mais que lavasse as feridas e comesse abundantemente para recuperar energia, Ta ficou cada vez mais fraco, até morrer em agonia. Entretanto, o jogo avisou-me inúmeras vezes que não estava preparado para este evento e que “devia voltar atrás”. Obrigado produção, deu para perceber.

Mas, o que é isso de “voltar para trás”? Realmente faria sentido retroceder passos… se houvesse de facto uma linha de acção para seguir. Não há, como já disse. O que significa que este ridículo aviso é uma profunda contradição do conceito do jogo. Se não há guião para seguir, como evito cometer erros? Não evito e morro muitas vezes, pronto. Aliás isto vai acontecer muitas vezes, uma vez que, morrendo um símio, passamos logo a controlar a sua prole, ainda menos experiente e que, obviamente, precisa de um adulto para a orientar. Ao que parece, estes pequenos aprendem com os progenitores mas… precisam andar com eles nas costas para fazer sentido das coisas. Se o adulto morreu, o que fazer agora?

Esta e muitas outras, são apenas algumas das perguntas que vamos fazendo ao longo do jogo e que raramente têm uma resposta óbvia. Vamos respondendo a elas, sim, mas a conta gotas, com muitas tentativas, muitos erros e muita frustração. Entendo bem o conceito do jogo, a componente aleatória e o convite à exploração, experimentar coisas e reagir de forma visceral. Somos tal e qual um chimpanzé a mexer num smartphone. Eventualmente, o pequeno macaco vai entender algumas coisas do funcionamento do telefone, mas não esperem uma chamada dele tão cedo. Entendo a experiência social da Panache, mas confesso que esta lógica não é das melhores para um videojogo.

Em termos de interface, é-nos explicado que temos umas teclas específicas para movimento, obviamente, tendo também uns quantos comandos simples para usar a inteligência (ficando parado a contemplar o que nos rodeia), cheirar e escutar o meio ambiente ou simplesmente “falar” (leia-se “grunhir”, claro). Ao usar estes menus especiais, no ecrã surgem representações pictográficas de objectos ou itens desconhecidos que podemos “memorizar” para nos dirigirmos nessa direcção e interagir com esse ponto de interesse, numa espécie de marcadores de mapa. Depois temos de pegar, identificar e experimentar estes itens, como no caso das pedras e paus que apanhamos, que cedo percebemos que pudemos usar como armas.

No que toca à subsistência, é algo semelhante. Sempre que encontramos uma planta, fruto ou outro alimento, também temos primeiro de o provar, identificando o que é e se é seguro comer. E o mesmo acontece com a água, que pode não ser própria para consumo. O que cria imensas situações caricatas de indigestão ou envenenamento e, às vezes, morte certa. Aqui não há plano nutricional ou ingredientes na embalagem, como devem calcular. E sempre que cometemos um erro, há efeitos no ecrã para deixar claro que algo não está bem. O mesmo acontece quando somos surpreendidos por perigos, com uma representação de medo a dar a entender que estamos em apuros.

Considero este interface é algo complexo mas até é fácil de entender, fazendo sentido do que estamos a fazer na maior parte do tempo. O que é incrível é que podemos escolher jogar sem qualquer interface ou tutoriais, o que é absolutamente insano. Talvez depois de umas horas até queiramos a “completa experiência imersiva”, de não termos qualquer informação digital, apenas o jogador, o símio e o mapa cheio de desafios à frente. Mas, fica no ar a questão de quantas horas queremos mesmo oferecer a Ancestors com tanta dependência da intuição. É que este sentimento de desorientação só se amplia daqui em diante. Felizmente, há uma linha de raciocínio.

A dada altura não sei mesmo o que fazer, é certo. O jogo deixa de me dar objectivos (que me recorde, deu-me dois: encontrar um dos filhos de Ta e depois voltar à tribo), mas não me explicou o que fazer a seguir. Por cada utensílio usado, por cada peça de fruta comida (ou doença resultante), por cada objecto explorado, vamos vendo o que parece uma árvore de evolução a dar-nos “milestones” ou objectivos cumpridos. Quais são, quantos são até conseguimos prever, mas como os despoletar… já sabem, é tudo fruto do acaso. Novamente, entendo o conceito, até acho interessante essa ideia de nada estar “escrito”, mas como videojogo é muitas vezes frustrante.

Nesta era de “facilitismo” é norma que sintamos desconforto quando um jogo não nos “leva ao colo” até aos créditos finais. Tenho de admitir que este conceito de jogo, que nos obriga a puxar pela inteligência (a nossa e a do símio), pode não agradar a todos. É como estarmos perante um gigante puzzle em forma de videojogo, cujas inúmeras portas precisam de inúmeras chaves, que estão espalhadas de forma aleatória num mapa complexo. Felizmente, nem o mapa é assim tão grande, nem as probabilidades são tão infinitas. Apenas uma selecção de plantas, frutos ou animais são comestíveis e está quase tudo relativamente perto. Ainda assim, é bem provável que se percam e desistam.

É que mesmo que acabemos para apreciar este espírito aleatório, algo incrivelmente injusto acontece. Das piores surpresas que podemos ter, como já deu para perceber, é encontrarmos um animal selvagem pouco disposto a dialogar. Serpentes gigantes, crocodilos e até javalis temperamentais, há de tudo um pouco na selva. Por vezes, temos avisos sonoros da sua presença, noutras vezes nem temos tempo para evitar encontros. E apesar do jogo nos dar uns milésimos de segundo para reagir com desvios, se formos golpeados, pode ser o fim. Numa mordedura de cobra, por exemplo, o veneno irá tirar-nos energia e deixar-nos com a visão afectada. No caso dos tigres dentes-de-sabre, já sabem o desfecho.

De resto, doença, fome, sede, todos os demais desafios de sobrevivência possuem uma solução. A fadiga, por exemplo, cura-se com uma boa noite de sono. A fome e sede são saciadas por alimentos que sabemos ser seguros. O que, a dada altura, nos convida a ficar “na bolha de segurança” que é a nossa tribo. E, sim, arriscamos menos e ainda prosperamos entre família… mas, como devem calcular, isso é incrivelmente aborrecido. E este não é um “simulador de família” propriamente dito. Se nada fizermos, ficaremos chimpanzés eternos. E lá vamos nós novamente à aventura, com o sério risco de morrermos outra vez. Mas, é mesmo assim que o jogo quer que passemos o tempo.

Ao explorar, cometendo erros ou fazendo descobertas, há uma clara evolução na jogabilidade. A ideia mais primordial é levar esta espécie ao topo da cadeia alimentar, levando a nossa própria inteligência humana como jogadores aos símios sintéticos que controlamos, nos milhares de anos que se apresentam à frente. A morte é apenas um elemento de transição, uma consequência inevitável nesta autêntica “bola de neve” imparável. Assim, arrisco dizer que só ao fim de umas boas horas de jogo é que Ancestors realmente se torna interessante e até, de certa forma, lógico nas suas excentricidades experimentais.

Contudo, chegando a este ponto na minha análise, tenho de abordar o tal receio da Panache estar à altura ou não deste enorme desafio que decidiu criar para si mesma. Confesso que, só pela persistência, é que continuei a jogar. Não por causa do conceito do jogo que, sendo algo complicado de aprender a gostar, acabou por gerar muito interesse e vontade de evoluir mais para ter mais ferramentas ou novas habilidades. A minha verdadeira questão com Ancestors prende-se com a componente técnica geral, de como estas ideias tão peculiares foram implementadas. Como já devem estar a prever, não foram muito bem concebidas.

Um dos maiores problemas, quanto a mim, é a Inteligência Artificial, quase inexistente. Entendo a ideia de que é o jogador que faz a diferença no seu meio com o hominídeo que controla. Contudo, nenhum do outros símios na tribo parece ser dotado das mesmas capacidades evolutivas… até os controlarmos. O que é perfeitamente ilógico no contexto da evolução da espécie. A tribo parece estática se não tomarmos a iniciativa, o que cria uma dependência clara do jogador. Seria de esperar que os restantes membros da tribo evoluíssem em paralelo mas não é o que acontece, obrigando-nos a  intervir activamente em actos tão críticos como expandir o território, por exemplo. Fica a pergunta se a Panache estaria a pensar em tornar isto numa experiência MMO, porque IA, o jogo não parece ter.

Por outro lado, o plano estritamente técnico. Fiquei bem impressionado que muitas das animações até sejam competentes, sobretudo no controlo da nossa personagem, com transições igualmente competentes, embora se notem muitas repetições de acções e animações algo “sintéticas”. Nada demais para um Indie com orçamento mais limitado. Agora, o que não consigo ultrapassar foram as texturas, modelação e os efeitos visuais, visualmente datados e sem grande… desculpem a piada… panache! Este podia ser um jogo de há 10 anos, onde nem um PC actual parece fazê-lo brilha nos presets mais altos. Não é uma aberração, notem, mas nestes dias de hoje, onde os “olhos também comem”, fica aquém do que se faz por aí neste género. O que é pena, porque “ao longe” parece tão soberbo. As suas falhas visuais chegam mesmo a distrair da experiência geral.

 

Veredicto

O conceito será um pouco difícil de agradar a todos. Um jogo de mundo aberto sem grande guião para seguir, não só não é inédito, como atrai muitos aventureiros. Acontece que a Panache Digital Games não criou muitas ferramentas de ajuda para Ancestors: The Humankind Odyssey e o sentimento de desorientação é omnipresente, certamente afastando muitos jogadores habituados a um fio condutor. Por outro lado, tecnicamente o jogo não é muito brilhante, ficando-se por uma simplicidade visual que não ostenta nem brilha. O resultado é um conceito curioso, francamente bem pensado, mas cujo resultado final não entusiasma, precisando de “algo” mais. O que é pena, porque não temos muitos jogos “cerebrais” assim. E a Humanidade justificava um pouco mais de empenho.

  • ProdutoraPanache Digital Games
  • EditoraPrivate Division
  • Lançamento27 de Agosto 2019
  • PlataformasPC
  • GéneroAventura
?
Sem pontuação

Ainda não tem uma classificação por estamos a rever o nosso esquema de pontuações em análises mais antigas.

Mais sobre a nossa pontuação
Não Gostámos
  • Visualmente não surpreeende
  • Alguma desorientação desnecessária
  • Inteligência Artificial quase inexistente

Esta análise foi realizada com uma cópia de análise cedida pelo estúdio de produção e/ou representante nacional de relações públicas.

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